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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

PALAVRA: DOS HOMENS, DAS COISAS, DAS PLANTAS E DOS ANIMAIS



fotos acima: daniel mansur



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fotos abaixo: tucha

abertura da exposição - museu mineiro











“Palavra: dos homens, das coisas, das plantas e dos animais”



Em sua origem, a palavra escrita, entre os sumérios, talvez tenha surgido como uma forma de contar o mundo: os dias que passam, as luas que se sucedem, os grãos dados pela terra, os amimais que foram mortos durante a caça...Os filhos ou os parentes que já se foram....Nas primeiras formas, a escrita guardava seu significado no silêncio dos símbolos, que vieram muito antes de as letras nos contarem o que nos falavam as palavras. Os símbolos, às vezes, podem conter a idéia das coisas; as letras do alfabeto ocidental são desenhos que nos permitem reproduzir os sons das palavras faladas. As palavras grafadas em desenhos de letras são uma parábola do mundo... Há palavras que guardam, na forma e no ritmo de seu desenho, a conformação que parece sugerir a imagem dos objetos ou algo da coisa que nomeia: ovo, libélula...
Nas palavras estão guardadas as coisas do mundo: grafar para não esquecer. Grafar para relacionar e compreender. Grafar para ler as leis dos homens. Grafar para fabular , confabular a história.


Os desenhos reunidos na mostra “Palavra: dos homens, das coisas, das plantas e dos animais” foram executados pelos Professores Índios de seis etnias do Estado de Minas Gerais, em oficinas de arte que aconteceram durante o II Curso de Formação de Professores Índios da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerias. Os primeiros desenhos surgiram em oficinas realizadas no território dos Xacriabá, no alto Norte de Minas, no Vale do Peruaçu, uma paisagem de mato baixo e chão carrasco, a caatinga. As proposições das oficinas foram pautadas na observação dos professores do curso, que sentiam necessidade de ter um material didático em que as imagens trouxessem referências culturais de seus povos e de sua história. Dessa observação surgiu a vontade de criarmos desenhos que pudessem vir a constituir um banco de imagens para futuras publicações didáticas e paradidáticas. No ano de 2003, em um encontro no Parque do Rio Doce, a aplicação de oficinas com outros orientadores de diversos conteúdos e a participação de Professores Índios de outras etnias abriram um campo profícuo para a realização de uma oficina que produziu os desenhos ora apresentados.


Foram criados desenhos nos quais a escrita da palavra e a imagem se fundem, o que possibilitou que os vejamos como “imagens escritas por palavras”. Criações que, na forma plástica e construtiva, condensam idéias contidas ou trazidas pelas palavras. Os desenhos preservam a letra ou os vestígios da palavra escrita, mas constituem, ainda, pequenas histórias a serem contadas.


A escolha de todos os vocábulos utilizados nos desenhos foi feita pelos Professores Índios e configuram um repertório importante no cotidiano desses indivíduos. Foram listados cerca de 550 vocábulos e, entre esses, os professores escolheram aqueles que iriam “desenhar”. A grafia desses desenhos ainda se atrela às práticas da tradição da escrita e da letra, e palavras foram criadas a partir da observação das formas de escrita de diversas culturas, em diversos tempos. Observou-se, também, a tradição da bela escrita, das letras capitulares e das iluminuras, tradições do alfabeto latino, que referendam essa cultura.


A técnica de esgrafito, com a qual os desenhos foram executados, consiste na sobreposição de duas camadas de materiais gráficos secos e molhados – neste caso, o naquim sobre o giz de cera. Utilizando-se de uma ponta seca ou algum instrumento cortante e duro, as camadas superiores são retiradas, revelando o material e as cores anteriormente cobertas pelo naquim. É técnica comum observada nas práticas artísticas, tendo sido utilizada desde a antiguidade e em diversos períodos da história da arte por importantes artistas. Está presente nas práticas de desenhos sobre as policromias da imaginária barroca e pode ser observada, também, entre as maneiras de desenhar dos povos índios, em ambos os casos, com variações específicas de procedimentos e de materiais.


Os desenhos da mostra “Palavra: dos homens, das coisas, das plantas e dos animais” são construções visuais que permitem a fantasia que poderia ilustrar as histórias contadas. Assim, esses desenhos aproximam universos de culturas distintas – a dos povos ligados à tradição da escrita e daqueles outros cujas formas de preservação da história e da memória do mundo tiveram ou ainda têm suas matrizes forjadas pela tradição da oralidade.


Os desenhos da mostra, além de objetos criados pelo fazer artístico e pelo testemunho do repertório preservado, podem ser vistos pelo olhar etnográfico e antropológico. A bela fatura e a riqueza de imagens e, principalmente, o vigor construtivo - uma herança das culturas Indígenas para o olhar brasileiro -, permitem que seus autores expressem elementos filtrados de suas experiências individuais e de suas matrizes culturais. São traços executados por mãos que se tornaram visíveis com os instrumentos da arte, permitindo que reconheçamos nas iconografias um pouco do imaginário desses povos. Os riscos ainda trazem o embate cultural experimentado durante processos nem sempre pacíficos, as trocas culturais deflagradas pelo convívio, ao longo dos anos, com povos de outras culturas e etnias indígenas, a formação educacional pela qual estavam passando e os modelos propostos pelos meios de comunicação.


Feitos por Índios das etnias Xacriabá, Xukuru-kariri, Pataxó, Kaxixó, Pankararu e Maxakali, os desenhos nos mostram a qualidade viva, orgânica e maleável de uma face das matrizes da cultura dos brasileiros, que, forjada pela presença das culturas indígenas, herdou o traço de abarcarmos práticas, maneiras e tradições de outras culturas, o que nos permite experimentar transformações. Entre os incontáveis legados deixados pela presença dessas etnias na formação do povo brasileiro, os desenhos demonstram que, às vezes, mesmo que aparentemente distantes, longe dos nichos da cultura oficial, as práticas de representação dos povos indígenas denunciam a nossa imagem.


Quando olhamos tais desenhos, somos tomados pelo prazer da leitura de imagens que foram orquestradas por índios brasileiros. Esse prazer parece acordar em nós a vontade de nos reconhecermos ali. Nosso olho, como se fosse um fiel filtro do mundo, rompe as barreiras que delimitam e compartimentam nossas práticas culturais em categorias balizadas por heranças de culturas e tradições esgarçadas, dissolvidas no encontro de inúmeras outras culturas que aqui se estabeleceram. Esses desenhos são como pequenos e delicados espelhos que nos são generosamente oferecidos: verdadeiro cristal que permite que reconheçamos um imaginário do qual também fazemos parte e que, pela linguagem da arte, tornam-se linhas que determinam o contorno da nossa “cara”.


Ao apresentar a mostra “Palavra: dos homens, das coisas, das plantas e dos animais”, o Museu Mineiro da Superintendência de Museus de Minas Gerias, da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, aponta a diversidade cultural das comunidades formadoras do nosso Estado e coloca no centro da atenção a cultura, objeto em permanente transformação e matéria prima desta nossa unidade de preservação da arte.



Francisco Magalhães

Diretor do Museu Mineiro

2008


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Há Três Casas na Caatinguinha


Foto de casa da caatinguinha - Verônica Mendes Pereira


Falar do mundo, através da observação do lugar, parece um ato comum aos interesses do geógrafo, biólogo, físico, sociólogo, historiador, antropólogo e artista. A observação atenta dos fatos sociais, do relevo, da vegetação, dos movimentos populacionais, dos movimentos naturais, das etnias e das práticas desenvolvidas especificamente por uma determinada cultura é para os observadores uma ferramenta eficiente no desenvolvimento de seus pensamentos, de suas obras.


Para o cientista, a observação dos fatos se dá de maneira aparentemente dissociada de sua história individual. A paisagem é, a princípio, algo diverso, dissociado da vontade que os move em direção à compreensão do mundo, do lugar.


E na concepção do artista, de que forma se dá a observação? O que ele olha? O que ele vislumbra? Quais serão os seus métodos? Para o artista, a paisagem aparece de forma quase atávica - o artista sempre estará falando do lugar. Para aquele que trabalha no campo da arte, a experiência de sua própria incursão no mundo, as suas memórias serão marcas determinantes em suas formas de criação.


Será objeto de curiosidade para o artista tudo aquilo que pode ser contido pelos sentidos: seu olhar perscrutador percebe a paisagem, vivencia o espaço. Absorve a cena, toma-a para si, para depois transfigurá-la dentro do embate criativo – a arte. Ao tentar compreender o que se dá no campo banal, o artista aproxima-se da essência do binômio homem/paisagem. Uma aproximação que resulta em reflexões – ação não natural – sobre o lugar, sobre a paisagem e sobre si mesmo. Imaginemos o artista sendo uma árvore na paisagem, um organismo alimentando-se do substrato do mundo, erguendo-se e sendo parte do lugar - modificando e sendo modificado.


O artista compreenderá o lugar ao considerar a paisagem como tudo aquilo que pode ser apreendido pelo “olhar” – a paisagem no seu entendimento mais amplo. Vale lembrar que esse vislumbre se dará pelos diversos sentidos, e, se os olhos são mesmo as janelas da alma, poderemos imaginar o artista como uma janela descerrada para a paisagem, estando e sendo dela a parte mais íntima, mais recôndita.


Aberto para a paisagem, o artista soma-se ao mundo. Ao observar e descrever a natureza, o lugar a partir de suas experiências e memórias, o artista nos oferece a possibilidade de compartilharmos de sua busca, de seu objeto, de seus fazeres – de sua paisagem interior, de seu lugar no mundo.


Um lugar do mundo - São João das Missões, pequena cidade do Norte de Minas, Vale do São Francisco, nas proximidades do Parque do Peruaçu - está demarcado pelo território dos Xacriabá. Ali, longe de tudo, no chão “carrasco” do território índio, numa única e pequena comunidade denominada Caatinguinha, um grupo de pessoas sobrevive no semi-árido.


Alguns indivíduos daquele tão pequeno grupo mantêm uma prática que ainda resiste na história local, nas suas raízes: no final do período das chuvas, na entrada da seca, aquelas pessoas pintam suas casas. Buscam na natureza os materiais que serão utilizados para isso, cavando o chão e retirando os “toás”, pigmentos que são socados, peneirados e mergulhados nas águas que se transformam em tintas – são cores da terra, da paisagem do lugar: é a cor do lugar. Utilizando-se de gravetos, de penas e dos próprios dedos umedecidos com a tinta do chão, inscrevem nas paredes de suas casas motivos florais e zoomórficos. Ao fim da estiagem, a boa nova ressurge: a chuva inverte o processo, o mato fica florido, as paredes das pequenas casas vão se lavando.


Fazem isto, talvez, para recuperar, na paisagem, a vida que a natureza, durante a seca, irá roubar. É uma ação que guarda a forma de resistência. É uma delicada afirmação da presença do homem naquele lugar, naquela paisagem: sobre as paredes de suas casas, eles recriam um jardim. É o jardim que nasce da memória atávica e ancestral das pessoas que ali habitam. É uma lembrança que se perde no começo de tudo. É um jardim primordial - um jardim construído pela arte. A arte que se prende ao ciclo da vida.


Francisco Magalhães
Diretor do Museu Mineiro
Abril de 2006